Da carta apostólica Mulieris dignitatem, de S. João Paulo II, n. 22.
O Evangelho revela e permite compreender precisamente este modo de ser da pessoa humana. O Evangelho ajuda toda mulher e todo homem a vivê-lo e assim a realizar-se. Existe, de fato, uma total igualdade em relação aos dons do Espírito Santo, em relação às « grandes obras de Deus » (At 2, 11). Não só isso. Precisamente diante das « grandes obras de Deus », o apóstolo-homem sente necessidade de recorrer àquilo que é por essência feminino, a fim de exprimir a verdade sobre o próprio serviço apostólico. Exatamente assim age Paulo de Tarso, quando se dirige aos Gálatas com as palavras: « Filhinhos meus por quem sofro novamente as dores do parto » (Gál 4, 19). Na primeira Carta aos Coríntios (7, 38) o apóstolo anuncia a superioridade da virgindade sobre o matrimônio, doutrina constante da Igreja no espírito das palavras de Cristo, relatadas no Evangelho de Mateus (19, 10-12), sem ofuscar absolutamente a importância da maternidade física e espiritual. Para ilustrar a missão fundamental da Igreja, ele não encontra outra coisa melhor do que se referir à maternidade.
Encontramos um reflexo da mesma analogia — e da mesma verdade — na Constituição dogmática sobre a Igreja. Maria é a « figura » da Igreja: [1] «Com efeito, no mistério da Igreja — pois também a Igreja é com razão chamada mãe e virgem — Maria precedeu, apresentando-se de modo eminente e singular, como modelo de virgem e de mãe… Deu à luz o Filho, a quem Deus constituiu primogênito entre muitos irmãos (cf. Rom 8, 29) isto é, entre os fiéis, para cuja regeneração e formação ela coopera com amor de mãe ». [2] « Por certo, a Igreja, contemplando-lhe a arcana santidade, imitando-lhe a caridade e cumprindo fielmente a vontade do Pai, mediante a palavra de Deus recebida na fé, torna-se também ela mãe, pois pela pregação e pelo batismo ela gera para a vida nova e imortal os filhos concebidos do Espírito Santo e nascidos de Deus ». [3] Trata-se aqui da maternidade «segundo o espírito » a respeito dos filhos e filhas do gênero humano. Tal maternidade — como foi dito — torna-se a « parte » da mulher também na virgindade. A Igreja « também é virgem que íntegra e puramente guarda a fé prometida ao Esposo ». [4] Isto se realiza em Maria da maneira mais perfeita. A Igreja, pois, « imitando a Mãe do seu Senhor, pela virtude do Espírito Santo, conserva virginalmente uma fé íntegra, uma sólida esperança e uma sincera caridade ». [5]
O Concílio confirmou que se não se recorre à Mãe de Deus, não é possível compreender o mistério da Igreja, a sua realidade, a sua vitalidade essencial. Indiretamente encontramos aqui a referência ao paradigma bíblico da « mulher », delineado claramente já na descrição do « princípio » (cf. Gn 3, 15), e ao longo do percurso que vai da criação, passando pelo pecado, até chegar à redenção. Deste modo se confirma a união profunda entre o que é humano e o que constitui a economia divina da salvação na história do homem. A Bíblia convence-nos do fato de que não se pode ter uma adequada hermenêutica do homem, ou seja, daquilo que é « humano », sem um recurso adequado àquilo que é « feminino ». Analogamente acontece na economia salvífica de Deus: se queremos compreendê-la plenamente em relação a toda a história do homem, não podemos deixar de lado, na ótica de nossa fé, o mistério da « mulher »: virgem-mãe-esposa.
[1] Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, n. 63: S. Ambrósio, in Lc II, 7: S. Ch. 45,74; De instit. Virg. XIV, 87-89 : PL 16, 326-327; S. Cirilo de Alexandria, Hom. 4 : PG 77, 996; S. Isidoro de Sevilha, Allegoriae 139 : PL 83, 117.
[2] Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, n.63.
[3] Ibid., n. 64.
[4] Ibid., n. 64.
[5] Ibid., n. 64. Sobre a relação Maria-Igreja, que ininterruptamente ocorre nas reflexões dos Padres da Igreja e de toda a Tradição cristã, cf. carta Enc. Redemptoris Mater, n. 42-44 e notas 117 -127 : l. c., p. 418-422. Cf. também Clemente de Alexandria, Paed., I, 6 : S. Ch. 70, 186-187; S. Ambrósio, in Lc II, 7 : S. Ch. 45-74; S. Agostinho, Sermo 192, 2 : PL 38, 1012; Sermo 195, 2 : PL 38, 1018; Sermo 25, 8 : PL 46, 938 : S. Leão Magno, Sermo 25, 5 : PL 54, 211 ; Sermo 26, 2 : PL 54, 213; Ven. Beda, in Lc l, 2 : PL 92, 330. « Ambas mães ― escreve Isacco della Stella, discípulo de S. Bernardo ― ambas virgens, ambas concebem por obra do Espírito Santo… Maria … gerou ao corpo a sua Cabeça; a Igreja … dá a esta Cabeça o seu corpo. Uma e outra são mães de Cristo: mas nenhuma delas o gera por inteiro sem a outra. Por isso justamente … aquilo que é dito em geral da virgem mãe Igreja se entende singularmente da virgem mãe Maria; e aquilo que se diz de modo especial da virgem mãe Maria se refere em geral à virgem mãe Igreja; e quanto se diz de uma delas pode ser entendido indiferentemente de uma e de outra » (Sermo 51, 7-8 : S. Ch. 339, 202-205.) .
http://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/apost_letters/1988/documents/hf_jp-ii_apl_19880815_mulieris-dignitatem.html