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Quinta-feira Santa: Jo 13,1-15 – A última ceia: escola permanente

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Por Dom André Vital Félix da Silva, SCJ.

É na glória da cruz de Cristo que brilha o mandamento do amor (lava-pés); é no brilho dessa cruz que resplandece o sacramento do amor (Eucaristia); é no esplendor dessa cruz que podemos cumprir o pedido do Mestre: ‘fazei isto em memória de mim’” (Diretório da Liturgia CNBB, p. 35). O Tríduo Pascal, ápice do ano litúrgico, coloca-nos de forma muito pedagógica e mistagógica diante e no núcleo de nossa fé; favorece-nos, através da oração contemplativa da celebração litúrgica, mergulhar e ser inundados pelo mistério da morte e ressurreição do Senhor, mas também é ocasião de discernimento para sabermos se estamos ou não tomando parte realmente desse Mistério. Não basta apenas crer que o Senhor morreu e ressuscitou proclamando esta verdade na oração (Eucaristia) que Ele mesmo mandou fazer em sua memória. Mas é preciso, também, ser testemunhas dessa verdade, assumindo o serviço que Ele realizou e nos mandou realizar (“lava-pés”) a fim de que o mundo creia. 

Se para nós “culto” e “serviço” têm significados diferentes, e portanto indicam realidades independentes, para a Sagrada Escritura usa-se a mesma palavra para referir-se a ambas situações (hebraico sharât: servir a Deus, adorá-lo 1Sm 3,1; servir o ser humano: 1Rs 19,21; grego doulein: servir a Deus Sl 71,11; At 7,7; serviço a pessoas Lc 15,29). Portanto, em Jesus, o serviço alcançou a sua expressão mais perfeita, pois glorificou o Pai, “que tinha colocado tudo em suas mãos”, fazendo a sua vontade; e, “amando os seus até o extremo”, prestou à humanidade o maior e imprescindível serviço que ela necessitava. A sua páscoa não se restringe ao momento de sua morte e ressurreição, mas é toda a sua passagem pelo mundo e compreende a sua saída e volta para o Pai. Por conseguinte, o êxodo de Jesus tem início com a sua encarnação, o seu despojamento: “Sendo Deus não se apegou a sua condição divina, mas esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e tornando-se igual aos homens” (Fl 2,6), e alcança o seu ponto alto na cruz, onde entrega tudo (vestes, perdão, mãe, sangue, espírito). A ceia e o lava-pés resumem todo o itinerário pascal do Verbo encarnado, que existindo desde toda a eternidade no seio do Pai, entrou na nossa história e armou sua tenda em nós (cf. Jo 1,14); a sua páscoa é culto e serviço.   

Celebrar a Ceia do Senhor é estar disposto a aprender as grandes lições do autêntico serviço (a Deus e ao próximo). Contudo, não basta apenas estar na ceia “do Senhor”, é preciso está na ceia “com o Senhor”: “Se eu não te lavar, não terás parte comigo”. Diante da resistência e incompreensão de Simão Pedro de não querer que Jesus lhe lavasse os pés, o Mestre declara que não pode ser seu discípulo quem não aceita ser servido por Ele, pois consequentemente não aprenderá com a vida o serviço aos outros. A expressão “não terás parte comigo” (grego ouk echeis meros met’emou: não tens parte em mim, comigo, depois de mim) resume o testamento de Jesus, isto é, deixar ser servido por Ele é herdar a sua vida, a sua missão, pois o seu discípulo continuará a fazer no mundo, o que aprendeu do Mestre. Não basta simplesmente saber o que Ele mandou fazer, mas é preciso aprender com Ele o modo de fazê-lo: “Vós me chamais mestre e Senhor e dizeis bem, pois eu sou…Se eu vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros”. Aqui está a grande novidade do serviço de Jesus, a sua marca fundamental, livre de qualquer ambiguidade ou demagogia. Ele não nega ser Mestre e Senhor, nem mesmo rejeita que os discípulos o chamem assim. Pois, se um servo lava os pés do seu senhor, não há nada de extraordinário nisso, nenhuma lição se pode aprender desse gesto, é sua obrigação. Mas quando o Senhor lava os pés do servo, toda lógica humana e natural estremece, o novo irrompe dando-se uma lição inédita. Jesus não abandonou o seu senhorio ou autoridade, pois os recebeu do Pai: “Todo poder me foi dado no céu e na terra”. 

Ao assumir a condição de servo, Jesus não se tornou impotente, fraco, incapaz, mas pelo contrário, manifestou-se nele o poder de Deus, do seu amor que vai até o extremo, pois é “próprio de Deus usar de misericórdia e, nisto, se manifesta de modo especial a sua onipotência” (São Tomás de Aquino). Quando a autoridade perde a sua potente capacidade de servir, enfraquece e apela para a violência do autoritarismo. 

Apesar de ter tido os pés lavados por Jesus e estar presente à ceia, Judas não aprendeu o exemplo do Mestre, não se deixou purificar: “Vós estais puros, mas não todos”. A impureza de Judas significa justamente essa sua incapacidade de reconhecer que o seu Senhor não é autoritário, mas servidor, que não divide com os seus discípulos armas a fim de que matem para se defender, mas os instrui com a sua palavra (“Vós já estais limpos por causa da palavra que vos fiz ouvir”, Jo 15,3) a amar sempre, inclusive os inimigos. 

A cada Eucaristia, o Senhor nos convida a sentar-se com Ele à mesa, alimenta-nos com sua palavra, e reparte conosco o seu corpo e sangue, a sua vida entregue como serviço ao Pai e à humanidade, a sua herança; contudo, não basta estar na ceia do Senhor, é preciso estar na ceia com o Senhor, tendo parte com Ele, assumindo a sua herança de amor e fidelidade aos extremos, eis o autêntico serviço.

Fonte: https://www.dehonianosbre.org.br/homilias/quinta-feira-santa–jo-13-1-15–a-ultima-ceia–escola-permanente

DOMINGO DE RAMOS – Ano B (P. Lucas, scj)

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Caros irmãos, a celebração da Semana Santa, semana maior da nossa fé, começa com o Domingo de Ramos e da Paixão do Senhor que, neste Ano B, nos traz os evangelhos da entrada de Jesus em Jerusalém e da Sua Paixão segundo S. Marcos (cf. Mc 11,1-10 e Mc 14,1-15,47, respectivamente). Peçamos ao Senhor o Seu Espírito para termos nossa vida renovada no mistério pascal.

Podemos viver bem a Semana Santa através de três atitudes que encontramos na liturgia de hoje, ou seja, adorar, oferecer e contemplar. Encontramos o primeiro na segunda leitura (cf. Fl 2,6-11). Nela, o Apóstolo descreve o movimento de esvaziamento do Filho de Deus até a Cruz e Sua consequente glorificação. Então, ele conclui: “ao nome de Jesus, todo joelho se dobre no céu, na terra e abaixo da terra, e toda língua proclame: ‘Jesus Cristo é o Senhor’, para a glória de Deus Pai” (Fl 2,10-11). Nesta semana somos chamados a dobrar os joelhos e adorar mais intensamente o Senhor, Deus que se humilhou, se fez homem e foi crucificado por amar cada um de nós. Este não é um detalhe: nosso Senhor pensava em você quando enfrentou a morte – lembre-se disso.

Em seguida, quando Jesus entrava em Jerusalém, o texto evangélico diz: “Muitos estenderam seus mantos pelo caminho, outros espalharam ramos que haviam apanhado nos campos” (Mc 11,8). Também nós precisamos acompanhar o Senhor Jesus oferecendo-lhe as boas intenções e atitudes que cultivamos na Quaresma para que Ele, derramando sobre nós o Espírito Santo, as faça frutificar numa vida nova. Não adianta nada jogar fora nosso esforço voltando na Páscoa aos antigos vícios. E sem a Graça divina ninguém é perseverante.

Enfim, precisamos contemplar, como o centurião romana que, estando próximo à Cruz, “viu como Jesus havia expirado, disse: ‘Na verdade, este homem era Filho de Deus!’” (Mc 15,39). Ou seja, nesta semana, apesar de muitas de nossas atividades continuarem normalmente, precisamos ter coração voltado para a Cruz e contemplar continuamente o modo como Jesus procedeu, abrir-nos ao Seu Amor e reconhecê-lo com fé. Não existe nada mais urgente ou importante. Deixemos a Misericórdia tocar nossa miséria.

Socorre-nos, ó Pai, com o Espírito Santo para que contemplando Teu Filho na Cruz sejamos capazes de acolher o Dom que fizeste por nós. Ó Mãe das Dores, ajuda-nos a vencer todo o respeito humano para estar com teu. São José, nosso protetor, fazei-nos íntimos de Jesus.

Sub tuum præsidium confugimus.
sancta Dei Genitrix:
nostras deprecationes
ne despicias in necessitatibus:
sed a periculis cunctis libera nos semper,
Virgo gloriosa et benedicta.

Domingo de Ramos e da Paixão do Senhor: Mc 15,1-39 – Ele não era um super-herói

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Por Dom André Vital Félix da Silva, SCJ.

Hoje a Igreja faz memória da entrada de Jesus em Jerusalém não apenas para recordar um acontecimento histórico, mas para mostrar a razão fundamental da sua entrega que culminará na sua paixão, morte e ressurreição. Ao entrar em Jerusalém montado num jumentinho, Jesus declara quem ele é, cumprindo assim a profecia de Zacarias: “Exulta muito, filha de Sião! Grita de alegria, filha de Jerusalém! Eis que o teu rei vem a ti: ele é justo e vitorioso, humilde, montado sobre um jumento, sobre um jumentinho, filho de jumenta” (Zc 9,9). Na celebração de hoje dois aspectos da Páscoa se evidenciam: na entrada em Jerusalém do Rei Messias, humilde e justo, temos o anúncio simbólico da vitória do ressuscitado, e na proclamação da sua paixão e morte, o modo como Jesus realizou a libertação da humanidade que jazia sob a sombra do pecado e da morte. 

A narração da condenação, paixão e morte de Jesus segundo Marcos alcança o seu ápice no testemunho de fé do centurião pagão que reconhece: “Na verdade, este homem era Filho de Deus”. Jesus não é um herói, tipo semideus que se livra magicamente dos perigos e adversidades deflagrando poderes extraordinários para superar dificuldades e escapar dos inimigos. Mas é o Deus que se fez homem verdadeiramente e, portanto, enfrenta corajosamente as consequências da sua fidelidade ao projeto do Pai.  

Todo o evangelho de Marcos tem como objetivo fundamental responder a pergunta: “Quem é Jesus?”. Já no início do evangelho o próprio evangelista antecipa a resposta: “Jesus, o Cristo, o Filho de Deus” (Mc 1,1). Contudo, não basta dizer essas palavras, ainda que acertadas, mas é preciso fazer o seu caminho, deixar-se formar pelos seus ensinamentos, estar disposto à conversão, renunciar a si mesmo e tomar a sua cruz. Doutro modo, a reposta será apenas uma afirmação teórica, insuficiente para perseverar e ser fiel até o fim, sobretudo quando for preciso dar a vida por Ele e pelo Reino, como Ele fez. 

Pilatos fez cinco perguntas que ajudam a discernir quem é Jesus. Por duas vezes se dirige a Jesus: “Tu és o rei dos Judeus?”, “Nada tens a responder?”. Para a primeira pergunta Jesus responde: “Tu o dizes”. Esta resposta pode ser compreendia como um esclarecimento, ou seja, “quem está dizendo aqui quem é rei é você (Pilatos) não eu (Jesus). Quando Pilatos pergunta a Jesus se ele é rei, naturalmente tem o seu próprio conceito de rei, isto é, as implicações políticas de tal afirmação, o que representaria uma afronta ao Império Romano do qual era funcionário e devia ser o defensor. A resposta de Jesus ressalta a incapacidade de Pilatos compreender qual o significado do seu Reinado. Pois o governador não era seu seguidor e, por isso, não tinha escutado as suas parábolas sobre o Reino, não presenciara as atitudes de Jesus que demostravam a proximidade do Reino de Deus, não aprendeu a oração ensinada por Jesus para pedir que o Reino viesse. Por conseguinte, só há uma possibilidade de compreender o que significa o reino de Jesus, isto é, indo ao calvário, seguindo-o, pois “ali estava uma inscrição com o motivo da sua condenação: ‘O rei dos judeus’”. Só na cruz esta afirmação ganha sentido inequívoco.

Diante da segunda pergunta de Pilatos, “Jesus não respondeu mais nada”. O silêncio de Jesus não é covardia nem resignação, mas confirma que a verdade da sua missão e do seu reinado não se prestam a discussões teóricas ou a argumentações racionais. Mais uma vez fica claro que sem fazer o caminho da cruz nenhuma resposta será suficiente. Essas duas perguntas de Pilatos encontram resposta na atitude de “Simão de Cirene, pai de Alexandre e de Rufo, que voltava do campo, foi obrigado a carregar a cruz de Jesus”. Apesar de num primeiro momento Simão ser obrigado a carregar a cruz, esse encontro forçado o fez reconhecer quem era verdadeiramente aquele condenado. Ao identificar Simão como o pai de Alexandre e Rufo (cristãos que se destacam na comunidade primitiva, Rufo citado por São Paulo, cf. Rm 16,13), o evangelista deixa subentendido que é um judeu convertido, provavelmente de uma colônia da África (Cirene). Portanto, Simão torna-se, de fato, seguidor de Jesus, pois não tem vergonha de testemunhar o mestre, a ponto de conduzir a sua família à adesão de fé. Isto seria impossível se não tivesse reconhecido Jesus como o Filho de Deus. Ao carregar a cruz de Jesus, Simão é banhado pelo seu sangue redentor e, por isso, tem suas vestes alvejadas no sangue do Cordeiro, como afirmará o Apocalipse de São João, “e segue-o aonde for” (Ap 7,14; 14,4).

Pilatos se dirige à multidão com três perguntas: “Vós quereis que eu solte o rei dos judeus?”, “Que quereis que eu faça com o rei dos judeus?”, “Mas que mal ele fez?”. A resposta é compulsiva: “Crucifica-o”. Pedindo a pena capital para Jesus, a multidão manifesta a sua ignorância em relação à sua missão e à sua pessoa. E decidindo pela soltura de Barrabás, opta pelo projeto libertário de um bandido que ilude o povo passando-se como defensor de seus direitos e paladino da justiça, mas na verdade assume estratégias de violência e de assassinato. 

O Domingo da Paixão é a grande proclamação de que o Cristo ressuscitado não é um mito inventado pelos cristãos chocados e inconformados com a sua morte. Vivenciar o Domingo da Paixão é aproximar-se da verdade de Jesus, o Filho de Deus, que não hesitou passar pelo sofrimento e a morte, a fim de que a sua ressurreição fosse consequência de uma vida totalmente entregue, e por isso tinha força suficiente para romper as amarras da morte, pois ele não quis ser considerado um super-herói, mas o Filho amado do Pai que não o abandonou.

Fonte: https://www.dehonianosbre.org.br/homilias/domingo-de-ramos-e-da-paixao-do-senhor–mc-15-1-39–ele-nao-era-um-super-heroi

O sacramento da nossa reconciliação

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Das Cartas de São Leão Magno, papa.

A humildade foi assumida pela majestade, a fraqueza, pela força, a mortalidade, pela eternidade. Para saldar a dívida de nossa condição humana, a natureza impassível uniu-se à natureza passível. Deste modo, como convinha à nossa recuperação, o único mediador entre Deus e os homens, o homem Jesus Cristo, podia submeter-se à morte através de sua natureza humana e permanecer imune em sua natureza divina.

Por conseguinte, numa natureza perfeita e integral de verdadeiro homem, nasceu o verdadeiro Deus, perfeito na sua divindade, perfeito na nossa humanidade. Por “nossa humanidade” queremos significar a natureza que o Criador desde o início formou em nós, e que assumiu para renová-la. Mas daquelas coisas que o Sedutor trouxe, e o homem enganado aceitou, não há nenhum vestígio no Salvador; nem pelo fato de se ter irmanado na comunhão da fragilidade humana, tornou-se participante dos nossos delitos.

Assumiu a condição de escravo, sem mancha de pecado, engrandecendo o humano, sem diminuir o divino. Porque o aniquilamento, pelo qual o invisível se tornou visível, e o Criador de tudo quis ser um dos mortais, foi uma condescendência da sua misericórdia, não uma falha do seu poder. Por conseguinte, aquele que, na sua condição divina se fez homem, assumindo a condição de escravo, se fez homem.

Entrou, portanto, o Filho de Deus neste mundo tão pequeno, descendo do trono celeste, mas sem deixar a glória do Pai; é gerado e nasce de modo totalmente novo. De modo novo porque, sendo invisível em si mesmo, torna-se visível como nós; incompreensível, quis ser compreendido;existindo antes dos tempos, começou a existir no tempo. O Senhor do universo assume a condição de escravo, envolvendo em sombra a imensidão de sua majestade; o Deus impassível não recusou ser homem passível, o imortal submeteu-se às leis da morte.

Aquele que é verdadeiro Deus, é também verdadeiro homem; e nesta unidade nada há de falso, porque nele é perfeita respectivamente tanto a humanidade do homem como a grandeza de Deus.

Nem Deus sofre mudança com esta condescendência da sua misericórdia nem o homem é destruído com sua elevação a tão alta dignidade. Cada natureza realiza, em comunhão com a outra, aquilo que lhe é próprio: o Verbo realiza o que é próprio do Verbo, e a carne realiza o que é próprio da carne.

A natureza divina resplandece nos milagres, a humana, sucumbe aos sofrimentos. E como o Verbo não renuncia à igualdade da glória do Pai, também a carne não deixa a natureza de nossa raça.

É um só e o mesmo – não nos cansaremos de repetir – verdadeiro Filho de Deus e verdadeiro Filho do homem. É Deus, porque no princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus: e o Verbo era Deus. É homem, porque o Verbo se fez carne e habitou entre nós (Jo 1,1.14).

Voltemos com alegria à Eucaristia!

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CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS – Prot. n. 432/20

Carta aos Presidentes das Conferências Episcopais da Igreja Católica sobre a celebração da liturgia durante e após a pandemia da COVID-19

A pandemia devida ao vírus COVID-19 produziu mutações não só nas dinâmicas sociais, familiares, económicas, formativas e laborais, mas também na vida da comunidade cristã, incluindo a dimensão litúrgica. Para impedir o contágio do vírus tornou-se necessário um rígido distanciamento social que teve repercussões sobre um aspeto fundamental da vida cristã: «Onde estão dois ou três reunidos em meu nome, aí estou Eu, no meio deles» (Mt 18, 20); «Eram assíduos ao ensino dos Apóstolos, à união fraterna, à fração do pão e às orações… Todos os crentes viviam unidos e possuíam tudo em comum» (At 2, 42-44).

A dimensão comunitária tem um significado teológico: Deus é relação de Pessoas na Trindade Santíssima; cria o homem na complementaridade relacional entre homem e mulher porque «não é bom que o homem esteja só» (Gn 2, 18), relaciona-se com o homem e a mulher e chama-os, por sua vez, à relação consigo: como bem intuiu Santo Agostinho, o nosso coração está inquieto enquanto não encontra Deus e n’Ele repousa (cf. Confissões, I,1). O Senhor Jesus iniciou o seu ministério público chamando para junto de si um grupo de discípulos para que partilhassem com Ele a vida e o anúncio do Reino; desta pequena grei nasce a Igreja. Para descrever a vida eterna, a Escritura usa a imagem de uma cidade: a Jerusalém celeste (cf. Ap 21); uma cidade é uma comunidade de pessoas que partilham valores, realidades humanas e espirituais fundamentais, lugares, tempos e atividades organizadas e que concorrem para a consecução do bem comum. Enquanto os pagãos construíam templos dedicados às divindades aos quais as pessoas não tinham acesso, os cristãos, assim que gozaram da liberdade de culto, logo edificaram lugares que fossem domus Dei et domus ecclesiae, onde os fiéis se pudessem reconhecer como comunidade de Deus, povo convocado para o culto e constituído em assembleia santa. Deus pode, portanto, proclamar: «Eu sou o teu Deus, tu serás o meu povo» (cf. Ex 6, 7; Dt 14, 2). O Senhor mantém-se fiel à sua Aliança (cf. Dt 7, 9) e Israel torna-se por isso mesmo Morada de Deus, lugar santo da sua presença no mundo (cf. Ex 29, 45; Lv 26, 11-12). Por isso, a casa de Deus supõe a presença da família dos filhos de Deus. Também hoje, na oração de dedicação de uma nova Igreja, o Bispo pede que ela seja o que por sua natureza deve ser:

«[…] Seja esta casa lugar para sempre santificado […].
Aqui sejam destruídos os pecados dos homens
pela torrente da graça divina,
para que os vossos filhos, ó Pai,
mortos para o pecado,
sejam regenerados para a vida do alto.
Aqui, os vossos fiéis,
reunidos em volta da mesa do altar,
celebrem o memorial da Páscoa
e sejam alimentados no banquete
da palavra e do Corpo de Cristo.
Aqui ressoe jubilosa a oblação do louvor,
voz dos homens unida aos cânticos dos Anjos,
e incessantemente suba para Vós
a oração pela salvação do mundo.
Aqui encontrem os pobres a misericórdia,
alcancem os oprimidos a verdadeira liberdade,
e todos os homens se revistam da dignidade de filhos vossos,
até chegarem, exultantes de alegria,
à Jerusalém do alto, a cidade do Céu».

A comunidade cristã nunca procurou o isolamento e jamais fez da Igreja uma cidade de portas fechadas. Formados para o valor da vida comunitária e para a procura do bem comum, os cristãos sempre procuraram inserir-se na sociedade, embora conscientes da uma alteridade: estar no mundo sem lhe pertencer nem a ele se reduzir (cf. Carta a Diogneto, 5-6). Também na emergência pandémica, sobressaiu um grande sentido de responsabilidade: à escuta e em colaboração com as autoridades de saúde e com os peritos, os Bispos e as suas Conferências territoriais estiveram prontos para assumir decisões difíceis e dolorosas, incluindo a suspensão prolongada da participação dos fiéis na celebração da Eucaristia. Esta Congregação está profundamente grata aos Bispos pelo empenhamento e esforço despendidos na tentativa de responder, do melhor modo possível, a uma situação imprevista e complexa.

Logo, porém, que as circunstâncias o permitam, é necessário e urgente retomar a normalidade da vida cristã, que tem o edifício igreja como casa e a celebração da liturgia, particularmente da Eucaristia, como o «cume para o qual tende a ação da Igreja e, simultaneamente, a fonte de onde promana toda a sua força» (Sacrosanctum Concilium, 10).

Conscientes do facto de que Deus jamais abandona a humanidade que criou e que até as provações mais duras podem dar frutos de graça, aceitamos a distância do altar do Senhor como um tempo de jejum eucarístico, útil para nos fazer redescobrir a sua importância vital, a sua beleza e preciosidade incomensurável. Logo que possível, porém, é preciso voltar à Eucaristia com o coração purificado, com um renovado maravilhamento, com um desejo acrescido de encontrar o Senhor, de estar com Ele, de o receber para o levar aos irmãos com o testemunho de uma vida plena de fé, amor e esperança.

Este tempo de privação pode dar-nos a graça de compreender o coração dos nossos irmãos mártires de Abitínia (inícios do século IV), os quais responderam aos seus juízes com serena determinação, mesmo perante uma condenação à morte certa: «Sine Dominico non possumus». O absoluto non possumus (não podemos) e a densidade de significado do substantivo neutro Dominicum (o que é do Senhor) não se podem traduzir com uma só palavra. Uma brevíssima expressão encerra uma grande riqueza de matizes e significados que hoje se oferecem à nossa meditação:

  • Não podemos viver, ser cristãos, realizar em pleno a nossa humanidade e os desejos de bem e de felicidade que o nosso coração acalenta sem a Palavra do Senhor, que na celebração ganha corpo e se torna palavra viva, pronunciada por Deus para quem abre hoje o coração à escuta;
  • Não podemos viver como cristãos sem participar no sacrifício da Cruz em que o Senhor Jesus se dá sem reservas para salvar, com a sua morte, o homem que estava morto por causa do pecado; o Redentor associa a si a humanidade e a reconduz ao Pai; no abraço do Crucifixo encontra luz e conforto todo o humano sofrimento;
  • Não podemos viver sem o banquete da Eucarística, mesa do Senhor à qual somos convidados como filhos e irmãos para receber o próprio Cristo Ressuscitado, presente em corpo, sangue, alma e divindade como Pão do céu que nos sustenta nas alegrias e nas canseiras da peregrinação terrena;
  • Não podemos viver sem a comunidade cristã, a família do Senhor: precisamos de encontrar os irmãos que partilham a filiação de Deus, a fraternidade de Cristo, a vocação e a procura da santidade e da salvação das suas almas na rica diversidade de idades, histórias pessoais, carismas e vocações;
  • Não podemos viver sem a casa do Senhor, que é a nossa casa, sem os lugares santos onde nascemos para a fé, onde descobrimos a presença providente do Senhor e descobrimos o seu abraço misericordioso que levanta quem caiu, onde consagramos a nossa vocação no seguimento religioso ou no matrimónio, onde suplicamos e agradecemos, exultamos e choramos, onde confiamos ao Pai os nossos entes queridos que completaram a sua peregrinação terrena;
  • Não podemos viver sem o dia do Senhor, sem o Domingo que dá luz e sentido ao suceder-se dos dias do trabalho e das responsabilidades familiares e sociais.

Por muito que os meios de comunicação desempenhem um prestimoso serviço em prol dos doentes e de quantos estão impedidos de se deslocar à Igreja, e prestaram um grande serviço na transmissão da Santa Missa no tempo em que não era possível celebrar comunitariamente, nenhuma transmissão se pode equiparar à participação pessoal ou a pode substituir. Aliás, estas transmissões, por si sós, correm o risco de nos afastarem de um encontro pessoal e íntimo com o Deus incarnado que se entregou a nós não de modo virtual, mas realmente, dizendo: «Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele» (Jo 6, 56). Este contacto físico com o Senhor é vital, indispensável, insubstituível. Logo que estejam identificadas e adotadas as medidas concretamente disponíveis para reduzir ao mínimo o contágio do vírus, é necessário que todos retomem o seu lugar na assembleia dos irmãos, redescubram a insubstituível preciosidade e beleza da celebração, chamem e atraiam com o contágio do entusiasmo os irmãos e irmãs desanimados, temerosos, ausentes ou distraídos há demasiado tempo.

Este Dicastério entende reafirmar alguns princípios e sugerir algumas linhas de ação para promover um rápido e seguro regresso à celebração da Eucaristia.

A devida atenção às normas higiénicas e de segurança não pode levar à esterilização dos gestos e dos ritos, à indução, ainda que inconsciente, de receio e insegurança nos fiéis.

Confia-se na ação prudente mas firme dos Bispos para que a participação dos fiéis na celebração da Eucaristia não seja desqualificada pelas autoridades públicas como uma «aglomeração» e não seja considerada como equiparável ou até subordinável a formas de agregação recreativas.

As normas litúrgicas não são matéria sobre a qual as autoridades civis possam legislar, mas são da exclusiva competência das autoridades eclesiásticas (cf. Sacrosanctum Concilium, 22).

Facilite-se a participação dos fiéis nas celebrações, mas sem improvisadas experimentações rituais e no pleno respeito pelas normas contidas nos livros litúrgicos que regulam a sua realização. Na liturgia, experiência de sacralidade, de santidade e de beleza que transfigura, saboreia-se já a harmonia da felicidade eterna: tenha-se, portanto, cuidado com a dignidade dos lugares, das alfaias sagradas, das modalidades celebrativas, segundo a autorizada indicação do Concílio Vaticano II: «Os ritos resplandeçam pela nobre simplicidade» (Sacrosanctum Concilium, 34).

Reconheça-se aos fiéis o direito de receber o Corpo de Cristo e de adorar o Senhor presente na Eucaristia, nos modos previstos, sem limitações que chegam mesmo a ir além do previsto pelas normas higiénicas emanadas pelas autoridades públicas ou pelos Bispos.

Os fiéis na celebração eucarística adoram Jesus Ressuscitado presente; e vemos que com demasiada facilidade se perde o sentido da adoração, a oração de adoração. Pedimos aos Pastores que insistam, nas suas catequeses, na necessidade da adoração.

Um princípio seguro para não errar é a obediência. Obediência às normas da Igreja, obediência aos Bispos. Em tempos de dificuldade (por exemplo, pensamos nas guerras, nas pandemias), os Bispos e as Conferências Episcopais podem dar normas provisórias às quais se deve obedecer. A obediência guarda o tesouro confiado à Igreja. Essas medidas ditadas pelos Bispos e pelas Conferências Episcopais caducam quando a situação regressa à normalidade.

A Igreja continuará a defender a pessoa humana na sua totalidade. Ela testemunha a esperança, convida a confiar em Deus, recorda que a existência terrena é importante mas muito mais importante é a vida eterna: partilhar a própria vida de Deus por toda a eternidade é a nossa meta, a nossa vocação. Esta é a fé da Igreja, testemunhada ao longo dos séculos por legiões de mártires e de santos, um anúncio positivo que liberta de reducionismos unidimensionais, de ideologias: à preocupação necessária pela saúde pública a Igreja une o anúncio e o acompanhamento para a salvação eterna das almas. Continuemos, pois, a entregar-nos com confiança à misericórdia de Deus, a invocar a intercessão da Bem-aventurada Virgem Maria, salus infirmorum et auxilium christianorum, para todos quantos são provados duramente pela pandemia e por qualquer outra aflição, perseveremos na oração por aqueles que deixaram esta vida e, ao mesmo tempo, renovemos o propósito de ser testemunhas do Ressuscitado e anunciadores de uma esperança certa, que transcende os limites deste mundo.

Vaticano, 15 de agosto de 2020.

Solenidade da Assunção da Virgem Santa Maria

O Sumo Pontífice Francisco, na audiência concedida a 3 de setembro de 2020 ao subscrito Cardeal Prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, aprovou esta carta e ordenou a sua publicação.

Cardeal Robert Sarah,
Prefeito

Fonte: http://www.conferenciaepiscopal.pt/v1/voltemos-com-alegria-a-eucaristia/

Para o texto em italiano: http://www.cultodivino.va/content/cultodivino/it/documenti/lettere-circolari/torniamo-con-gioia-all-eucaristia–15-agosto-2020-.html

QUARTO DOMINGO DA QUARESMA – Ano B (P. Lucas, scj)

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Caros irmãos, no quinto domingo da Quaresma (Ano B), o evangelho proclama a hora de Jesus (cf. Jo 12,20-33). Peçamos ao Senhor que nos dê a graça de estarmos sempre unidos a Ele.

Nosso Senhor, pouco antes de entrar no mistério de Sua paixão, morte e ressurreição, declara: “Chegou a hora em que o Filho do Homem vai ser glorificado” (Jo 12,23). O que nos leva a pensar sobre a Sua glória. Em outras palavras, como a morte do Justo pode ser considerada a Sua glória? Não seria ela, pelo contrário, a Sua ruína? Começamos a entrever a resposta a essas perguntas quando, a partir da segunda leitura, a colocamos no seu contexto, isto é, no todo do Mistério Pascal: “Cristo, nos dias de sua vida terrestre, dirigiu preces e súplicas, com forte clamor e lágrimas, àquele que era capaz de salvá-lo da morte. E foi atendido, por causa de sua entrega a Deus” (Hb 5,7). De fato, o Pai libertou Seu Filho da morte não simplesmente evitando que Ele morresse, mas, pelo poder do Espírito Santo, fazendo com que Ele se levantasse vitorioso da morte. E atenção para o motivo: por causa de Sua entrega a Deus.

Caríssimos, esta é a vitória da nossa fé: sabermos que nada do que precisamos superar na nossa vida deve ser vivido na solidão: Jesus Cristo nos precedeu e nos acompanha: nele podemos confiar; a Ele – e só a Ele – devemos nos entregar sem reservas. Ou seja, nosso Senhor, quando assumiu a nossa carne e experimentou o nosso miserável viver e morrer, nos deu a Vida verdadeira e eterna. Nele se cumpre a união de Deus com a humanidade. Nele somos um povo que tem Deus. Cumpriu-se verdadeiramente a promessa feita através de Jeremias “serei seu Deus e eles serão meu povo” (Jr 31,33 – primeira leitura). E nisso Ele é glorificado. Pois, como nos ensinou Santo Irineu de Lyon: “a glória de Deus é o homem vivo, e a vida do homem é a visão de Deus”. Porque na Sua Cruz nós fomos curados, essa mesma Cruz – que se manifesta continuamente na nossa vida como um convite a nos entregarmos a Deus – é a Sua glória. Não nos esqueçamos jamais que Jesus Cristo é Deus conosco.

Ó Pai, dá-nos o Espírito Santo para que estejamos unidos a Teu Filho quando a cruz se manifestar em nossa vida. Ó Mãe das Dores, ajuda-nos a conservar nosso coração aberto a teu Jesus quando tudo parecer trevas na nossa vida. São José, nosso protetor, dá-nos a força para não murmurar jamais.

Sub tuum præsidium confugimus.
sancta Dei Genitrix:
nostras deprecationes
ne despicias in necessitatibus:
sed a periculis cunctis libera nos semper,
Virgo gloriosa et benedicta.

PS: O evangelho deste final de semana traz a seguinte frase de Jesus: “Quem se apega à sua vida, perde-a; mas quem faz pouca conta de sua vida neste mundo conservá-la-á para a vida eterna” (Jo 12,25). Trata-se de uma frase presente nos quatro evangelhos (embora, nos sinóticos, esteja em um contexto diferente deste no qual é apresentada por João). O seu valor transcendente e escatológico é claro: para Viver, para fazer parte do Reino dos Céus, precisamos amar mais Jesus Cristo que esta vida.

Porém, já há algum tempo tenho pensado que existe um valor imanente na mesma afirmação – e isso me surpreendeu muito. De fato, a situação que aí está (há mais de um ano) o mostra claramente: quem colocar a sobrevivência no topo de sua escala de valores, como valor supremo, não será capaz nem mesmo de viver decentemente: chegará, quando muito, a não perder suas funções orgânicas. Pior, se submeterá a todo tipo de tirania para ter que se responsabilizar pelo risco de viver. Assim, nem mesmo o muito pouco que esta vida pode oferecer será capaz de viver.

Não é admirável que nosso Senhor deixe Seus sinais por toda parte? Afinal, conhece de tal modo a realidade por Ele criada que – pasmem os ateus – Seus preceitos são corretos até para quem não O tem em conta. Em outras palavras, vale a pena seguir as palavras de Jesus até para ser um bom materialista. É triste, porém, ver muitos cristãos que, por medo de perder esta vida, não a querem mais viver e, pior ainda, impedem que outros a vivam… Pensar e resgatar o sentido de nossa vida – e de nossa morte – através da fé é uma urgência que não pode ser negligenciada. Que nosso Senhor resgate em nós o senso das proporções!

V Domingo da Quaresma: Jo 12,20-33 – Ver Jesus? Só na cruz!

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Por Dom André Vital Félix da Silva, SCJ.

O evangelho de hoje reafirma a verdade de que é impossível tornar-se discípulo de Jesus se não tivermos a coragem de segui-lo até a cruz. Pois é lá que veremos, de fato, quem Ele é (Filho do Homem) e o significado da sua missão (dar a vida pela salvação da humanidade). No pedido dos gregos a Filipe: “Senhor, gostaríamos de ver Jesus”, pode-se entrever, inclusive nos tempos de hoje, a motivação de muitas pessoas que manifestam apenas uma curiosidade de ver Jesus, mas nem sempre estão dispostas a conhecê-lo e assumir o seu caminho (Herodes também queria ver Jesus cf. Lc 9,9). Contudo, a resposta de Jesus indica o momento no qual Ele será visto: “chegou a hora em que o Filho do Homem será glorificado”. A glória de Jesus, segundo São João, é o momento da sua morte, por isso Ele mesmo declara: “Em verdade, em verdade vos digo, se o grão de trigo que cai na terra não morre, ele continua só um grão de trigo, mas, se morre, então produz muito fruto”. 

O pão que na Eucaristia se torna o corpo de Cristo não tem apenas significado de alimento, mas traz em si a memória de todo o processo de como se tornou pão: é o resultado de um grão de trigo que caiu na terra, morreu, produziu fruto e que, depois de ser triturado, tornou-se massa e, finalmente, pão, alimento. Pensar o pão apenas na sua fase final é colocar em risco o reconhecimento do seu valor inestimável, pois ele não chegou à mesa de forma mágica, fácil, mas é resultado de um árduo processo de vida e morte: “Quem se apega a sua vida perde-a; mas quem faz pouca conta de sua vida neste mundo conservá-la-á para a vida eterna”.

Jesus explicita que só há um modo de aproximar-se Dele: “Se alguém me quer servir, siga-me”. Na perspectiva bíblica “servir” também tem significado de culto, adoração. No início da perícope João diz que “havia alguns gregos entre aqueles que tinham subido a Jerusalém para adorar durante a festa”. Portanto, o servir a Jesus não é prestar-lhe um culto qualquer, mas é, antes de tudo, fazer a vontade do Pai, e a vontade do Pai é reconhecê-lo como seu Filho, crendo nele. Os gregos pedem para ver Jesus, mas é o Pai quem vai mostrá-lo. Por isso, naquele momento, antecipa-se a hora de Jesus quando se escuta a voz do céu: “Eu o glorifiquei”, em referência à Encarnação: “E o Verbo se fez carne… E nós vimos a sua glória”, “e o glorificarei de novo”, um anúncio da realização da hora de Jesus na cruz: “quando for elevado da terra atrairei todos a mim”. Portanto, a glória de Deus se manifesta de modo concreto no seu Filho que é o Verbo encarnado, o Cristo crucificado e o Senhor ressuscitado. 

Cristo elevado na cruz se tornou a escada entre a terra e o céu, da qual Ele mesmo falou no início do evangelho de João: “Vereis o céu aberto, e o anjos do céu subindo e descendo sobre o Filho do homem” (1,51). Ao ser elevado da terra, Jesus também elevou consigo a nossa humanidade, assumida na encarnação e redimida na cruz. 

Por conseguinte, sem ir ao calvário, ou seja, sem presenciar a manifestação da sua glória, da revelação do seu amor no ato extremo de sua doação na cruz, não será possível vê-lo realmente e saber quem Ele é. Contemplar aquele que foi traspassado é a condição indispensável para compreender tudo aquilo que Ele fez e ensinou. Por isso, no lava-pés, diante da incompreensão de Pedro ao ver seu mestre abaixado lavando os seus pés como um escravo, Jesus anuncia “O que faço, não compreendes agora, mas o compreenderás mais tarde” (Jo 13,7). Só quando for elevado na cruz será possível compreender o significado profundo do seu abaixar-se para lavar pés dos seus amigos. Pois assim como para lavar os pés dos discípulos depôs o manto e usou a água da bacia, na cruz foi despojado de suas roupas e fez jorrar do seu coração sangue e água para purificar a humanidade do seu pecado. 

O Cristo exaltado na cruz realiza o julgamento definitivo desse mundo. Pois no crucificado eleva-se tudo aquilo que o ser humano necessita para derrotar o mal, a injustiça, o pecado, por isso tem o poder de atrair todos a si. 

Por isso, na sexta-feira santa a Igreja ergue o sinal da vitória do Cristo Senhor justamente para proclamar nesse gesto a realização da sua palavra. Não ergue um símbolo de fracasso e derrota, mas o sinal de que o cordeiro imolado é verdadeiramente vitorioso.

Fonte: https://www.dehonianosbre.org.br/homilias/v-domingo-da-quaresma–jo-12-20-33–ver-jesus-so-na-cruz-

PAI NA SOMBRA

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Da Carta Apostólica Patris corde, do Papa Francisco, n. 7.

O escritor polaco Jan Dobraczyński, no seu livro A Sombra do Pai, [1] narrou a vida de São José em forma de romance. Com a sugestiva imagem da sombra, apresenta a figura de José, que é, para Jesus, a sombra na terra do Pai celeste: guarda-O, protege-O, segue os seus passos sem nunca se afastar d’Ele. Lembra o que Moisés dizia a Israel: «Neste deserto (…) vistes o Senhor, vosso Deus, conduzir-vos como um pai conduz o seu filho, durante toda a caminhada que fizeste até chegar a este lugar» (Dt 1, 31). Assim José exerceu a paternidade durante toda a sua vida. [2]

Não se nasce pai, torna-se tal… E não se torna pai, apenas porque se colocou no mundo um filho, mas porque se cuida responsavelmente dele. Sempre que alguém assume a responsabilidade pela vida de outrem, em certo sentido exercita a paternidade a seu respeito.

Na sociedade atual, muitas vezes os filhos parecem ser órfãos de pai. A própria Igreja de hoje precisa de pais. Continua atual a advertência dirigida por São Paulo aos Coríntios: «Ainda que tivésseis dez mil pedagogos em Cristo, não teríeis muitos pais» (1 Cor 4, 15); e cada sacerdote ou bispo deveria poder acrescentar como o Apóstolo: «Fui eu que vos gerei em Cristo Jesus, pelo Evangelho» (4, 15). E aos Gálatas diz: «Meus filhos, por quem sinto outra vez dores de parto, até que Cristo se forme entre vós!» (Gl 4, 19).

Ser pai significa introduzir o filho na experiência da vida, na realidade. Não segurá-lo, nem prendê-lo, nem subjugá-lo, mas torná-lo capaz de opções, de liberdade, de partir. Talvez seja por isso que a tradição, referindo-se a José, ao lado do apelido de pai colocou também o de «castíssimo». Não se trata duma indicação meramente afetiva, mas é a síntese duma atitude que exprime o contrário da posse. A castidade é a liberdade da posse em todos os campos da vida. Um amor só é verdadeiramente tal, quando é casto. O amor que quer possuir, acaba sempre por se tornar perigoso: prende, sufoca, torna infeliz. O próprio Deus amou o homem com amor casto, deixando-o livre inclusive de errar e opor-se a Ele. A lógica do amor é sempre uma lógica de liberdade, e José soube amar de maneira extraordinariamente livre. Nunca se colocou a si mesmo no centro; soube descentralizar-se, colocar Maria e Jesus no centro da sua vida.

A felicidade de José não se situa na lógica do sacrifício de si mesmo, mas na lógica do dom de si mesmo. Naquele homem, nunca se nota frustração, mas apenas confiança. O seu silêncio persistente não inclui lamentações, mas sempre gestos concretos de confiança. O mundo precisa de pais, rejeita os dominadores, isto é, rejeita quem quer usar a posse do outro para preencher o seu próprio vazio; rejeita aqueles que confundem autoridade com autoritarismo, serviço com servilismo, confronto com opressão, caridade com assistencialismo, força com destruição. Toda a verdadeira vocação nasce do dom de si mesmo, que é a maturação do simples sacrifício. Mesmo no sacerdócio e na vida consagrada, requer-se este género de maturidade. Quando uma vocação matrimonial, celibatária ou virginal não chega à maturação do dom de si mesmo, detendo-se apenas na lógica do sacrifício, então, em vez de significar a beleza e a alegria do amor, corre o risco de exprimir infelicidade, tristeza e frustração.

A paternidade, que renuncia à tentação de decidir a vida dos filhos, sempre abre espaços para o inédito. Cada filho traz sempre consigo um mistério, algo de inédito que só pode ser revelado com a ajuda dum pai que respeite a sua liberdade. Um pai sente que completou a sua ação educativa e viveu plenamente a paternidade, apenas quando se tornou «inútil», quando vê que o filho se torna autónomo e caminha sozinho pelas sendas da vida, quando se coloca na situação de José, que sempre soube que aquele Menino não era seu: fora simplesmente confiado aos seus cuidados. No fundo, é isto mesmo que dá a entender Jesus quando afirma: «Na terra, a ninguém chameis “Pai”, porque um só é o vosso “Pai”, aquele que está no Céu» (Mt 23, 9).

Todas as vezes que nos encontramos na condição de exercitar a paternidade, devemos lembrar-nos que nunca é exercício de posse, mas «sinal» que remete para uma paternidade mais alta. Em certo sentido, estamos sempre todos na condição de José: sombra do único Pai celeste, que «faz com que o sol se levante sobre os bons e os maus, e faz cair a chuva sobre os justos e os pecadores» (Mt 5, 45); e sombra que acompanha o Filho.

[1] Edição original: Cień Ojca (Varsóvia 1977).

[2] Cf. São João Paulo II, Exort. ap. Redemptoris custos (15 de agosto de 1989), 7-8: AAS 82 (1990), 12-16.

O BEM DA CARIDADE

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Dos Sermões de São Leão Magno, papa.

Diz o Senhor no Evangelho de João: Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns aos outros (Jo 13,35). E também se lê numa Carta do mesmo Apóstolo: Caríssimos, amemo-nos uns aos outros, porque o amor vem de Deus e todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece Deus. Quem não ama, não chegou a conhecer Deus, pois Deus é amor (1Jo 4,7-8).

Examine-se a si mesmo cada um dos fiéis, e procure discernir com sinceridade os mais íntimos sentimentos de seu coração. Se encontrar na sua consciência algo que seja fruto da caridade, não duvide que Deus está com ele; mas se esforce por tornar-se cada vez mais digno de tão grande hóspede, perseverando com maior generosidade na prática das obras de misericórdia.

Se Deus é amor, a caridade não deve ter fim, porque a grandeza de Deus não tem limites.

Para praticar o bem da caridade, amados filhos, todo tempo é próprio. Contudo, estes dias da Quaresma, a isso nos exortam de modo especial. Se desejamos celebrar a Páscoa do Senhor com o espírito e o corpo santificados, esforcemo-nos o mais possível por adquirir essa virtude que contém em si todas as outras e cobre a multidão dos pecados.

Ao aproximar-se a celebração deste mistério que ultrapassa todos os outros, o mistério do sangue de Jesus Cristo que apagou as nossas iniquidades, preparemo-nos em primeiro lugar mediante o sacrifício espiritual da misericórdia; o que a bondade divina nos concedeu, demo-lo também nós àqueles que nos ofenderam.

Seja, neste tempo, mais larga a nossa generosidade para com os pobres e todos os que sofrem, a fim de que os nossos jejuns possam saciar a fome dos indigentes e se multipliquem as vozes que dão graças a Deus. Nenhuma devoção dos fiéis agrada tanto a Deus como a dedicação para com os seus pobres, pois nesta solicitude misericordiosa ele reconhece a imagem de sua própria bondade.

Não temamos que essas despesas diminuam nossos recursos, porque a benevolência é uma grande riqueza e não podem faltar meios para a generosidade onde Cristo alimenta e é alimentado. Em tudo isso, intervém aquela mão divina que ao partir o pão o faz crescer, e ao reparti-lo multiplica-o.

Quem dá esmola, faça-o com alegria e confiança, porque tanto maior será o lucro quanto menos guardar para si, conforme diz o santo Apóstolo Paulo: Aquele que dá a semente ao semeador e lhe dará pão como alimento, ele mesmo multiplicará vossas sementes e aumentará os frutos da vossa justiça (2Cor 9,10), em Cristo Jesus, nosso Senhor, que vive e reina com o Pai e o Espírito Santo pelos séculos dos séculos. Amém.

QUARTO DOMINGO DA QUARESMA – Ano B (P. Lucas, scj)

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Caros irmãos, no quarto domingo da Quaresma (Ano B), da boca de Jesus, recebemos o grande anúncio do Evangelho da Salvação (cf. Jo 3,14-21). Abramos nosso coração a fim de que o Senhor não nos encontre (mais uma vez) indiferentes ao Seu amor.

A liturgia deste domingo começa com um convite à alegria, pois grita o profeta Isaías na antífona de entrada: “Alegra-te, Jerusalém!” (Is 66,10). E, de fato, é motivo de verdadeira alegria a mensagem que nosso Senhor nos traz, pois Ele diz: “Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que não morra todo o que nele crer, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16). Caros irmãos, como é bom saber que existe a salvação! Que não estamos perdidos; que não fomos abandonados a nós mesmos… O que não podemos fazer – porque é a pura verdade: não somos capazes de nos salvar – o Deus único, vivo e verdadeiro providenciou para nós em Seu Filho, Jesus Cristo, que é nosso salvador. Como não exultar de alegria ao nos reconhecermos objetos de um amor tão grande assim?

E tal é a necessidade que temos deste anúncio que ele retorna nas palavras do Apóstolo: “Deus nos ressuscitou com Cristo e nos fez sentar nos céus em virtude de nossa união com Jesus Cristo” (Ef 2,6). O Pai nos fez vencer a morte não para ficarmos indefinidamente neste mundo marcado pela morte e pela dor, mas para, ressuscitados, sentarmo-nos à Sua mesa nos Céus. O segredo, porém, para que o experimentemos está nas palavras em virtude de nossa união com Jesus Cristo. Pela ação do Espírito Santo, recebido no Batismo, o Salvador está presente a nós. Mais ainda: pela ação do Espírito recebemos Jesus Cristo em nós e, n’Ele, tudo o que sempre procuramos sem saber muito bem o que é.

Por isso, perguntemo-nos com sinceridade: Jesus Cristo está presente no meu cotidiano? Quanto tempo tenho dedicado para estar com Ele? Faço tudo em Sua presença? E, se sua resposta a essas perguntas não te satisfizerem, questione-se: quem (ou o quê) está ocupando o lugar que é do Senhor Jesus em minha vida? Que a salvação vinda do Pai por Jesus Cristo, Seu Filho, na unidade do Espírito Santo não passe pela nossa vida sem que encontre em nós uma resposta consciente e positiva.

Pai de Misericórdia, dá-nos o Espírito Santo para vivermos unidos a Cristo. Ó Mãe Imaculada, ensina-nos a ouvir a voz de Deus. São José, nosso protetor, dá-nos coragem para pagar o preço de viver de fé.

Sub tuum præsidium confugimus.
sancta Dei Genitrix:
nostras deprecationes
ne despicias in necessitatibus:
sed a periculis cunctis libera nos semper,
Virgo gloriosa et benedicta.

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