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Domingo de Ramos e da Paixão do Senhor: Mt 21,1-11 e 27,11-54 – Quem é este Rei desarmado que abala a terra?

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Por Dom André Vital Félix da Silva, SCJ.

A liturgia deste Domingo, introduzindo-nos na “Grande Semana”, faz-nos reviver in memoriam a entrada em Jerusalém de Jesus, o Rei manso e humilde; é uma profecia em ato para anunciar a sua vitoriosa ressurreição. Mas também nos faz mergulhar profundamente no mistério de sua paixão e morte de cruz, condição sem a qual não teria nenhum sentido nem eficácia a celebração da sua ressurreição. Pois proclamar a ressurreição de alguém cujo sofrimento e a morte para nós são apenas vagas informações, visto que não nos tornamos participantes dessa sua dura realidade, não passaria de uma experiência artificial e alienante. Contudo, a celebração do Mistério Pascal não é simplesmente uma festa horizontal onde celebramos as nossas vitórias, mas é, antes de tudo, proclamação da vitória de Deus que nos alcança. Ele que não abandonou o seu Filho à morte, mas o ressuscitou, encoraja-nos a lutar pela vida, crendo que a morte foi destruída e, no seu Filho morto e ressuscitado, temos a garantia da nossa ressurreição. 

A tentação de dar um salto para a manhã da ressurreição, evitando a tarde do calvário e a noite do sepulcro, é uma das piores traições que se pode cometer contra o Mestre, que não desceu covardemente da cruz nem contornou o sepulcro, mas entregou a sua vida para que tivéssemos vida, e vida em plenitude. Hoje infelizmente há uma forte tendência entre nós de esvaziamento das expressões simbólico-litúrgicas da celebração da Paixão e Morte do Cordeiro vitorioso, tão caras ao povo de Deus que, na sua naturalidade e espontaneidade religiosa, não tem dificuldade de sintonizar-se com o mistério da dor do Cristo, assumindo-a como sua, para alegrar-se com a sua ressurreição, garantia da sua. Por causa de um racionalismo devastador do universo simbólico, muitos eclesiásticos negam ao povo o direito de contemplar a dor e o sofrimento do Bom Jesus dos Passos, beijar a sua cruz, solidarizar-se com a Mãe Dolorosa, que recebe nos braços o seu filho morto e o deposita no sepulcro. Será que a motivação é simplesmente evitar que se caia no risco de um sentimentalismo alienante? Para além das indiscutíveis e legítimas preocupações diante de desvios da finalidade pedagógica da liturgia e de práticas devocionais, a resistência em colocar-se diante do homem das dores (1ª Leitura) é sintoma de um medo de ter que assumir também o seu caminho. Assumindo a nossa condição, Jesus nos fez participantes da sua dignidade de Filho de Deus, obediente até a morte de cruz (2ª Leitura), por isso “se com ele morremos, com ele reinaremos”. 

A entrada de Jesus em Jerusalém deixa a cidade agitada; as aclamações da multidão que o seguia, provocam uma pergunta: “Quem é este homem?” As pessoas tomadas de entusiasmo respondem: “Este é o profeta Jesus, de Nazaré da Galileia”. Porém, não são os seus gritos frenéticos que dirão quem ele é, mas é o próprio Jesus que, com o seu silêncio e suas poucas palavras, dará a resposta definitiva sobre a sua identidade e sua missão. 

Mateus constrói a narração da paixão e morte de Jesus tendo presente esta pergunta. Os vários personagens tentam responder. Pilatos perguntando: “Tu és o rei dos Judeus?” não escuta de Jesus uma resposta, mas a repetição do que acabava de dizer. Isto é uma tentativa de levar Pilatos à consciência do que estava perguntando. Sendo um pagão, não saberia nunca o que significa, segundo as Escrituras, o Rei dos Judeus, o ungido de Deus (Mashiah). Respondendo sim ou não, Jesus não tiraria a dúvida de Pilatos, por isso o seu silêncio. Em seguida, Pilatos quer que o povo responda que tipo de Rei eles preferem: Jesus de Nazaré ou Jesus Barrabás (em alguns manuscritos o nome de Barrabás é composto com Jesus). Mais do que um prisioneiro famoso, Barrabás é simbolicamente o falso messias (aramaico Bar: filho; Abbá: pai). Enquanto pedem a liberdade para Barrabás, o assassino, o falso “filho do Pai”, gritam a morte para Jesus, que é o “Deus que salva”. Por sua vez, Simão cirineu não é obrigado apenas a dar uma ajuda ao condenado, mas também ele deve responder quem é Jesus: é o mestre cujo discípulo deve estar disposto a aceitar a carregar também a sua cruz e seguir seus passos (Mt 16,24). Quatro grupos manifestam a sua ignorância diante de Jesus: os soldados do governador que escarnecem da sua realeza; os transeuntes que injuriam a sua divindade; os sumos sacerdotes que ridicularizam a sua humanidade (filho de Deus encarnado), e, por fim os ladrões que o insultavam. 

Não são as palavras de Jesus dirigidas a nenhum desses grupos que vão confirmar quem ele é. Mas aquilo que Ele diz ao Pai: “Meu Deus, meu Deus por que me abandonaste?”  Certamente, essas palavras são as mais escandalosas que podemos ouvir de Jesus. Mas é fundamental considerar duas coisas para evitar conclusões precipitadas. Antes de tudo, é uma pergunta diante das injúrias, blasfêmias e insultos; pois todos estão afirmando que Deus o abandonou. Ademais, essas palavras iniciam o Salmo 21 (22), que rezamos na liturgia de hoje, portanto, o evangelista supõe que seus leitores conheçam o salmo completo. Não é um salmo de desespero, mas de confiança inabalável em Javé: “Sim, pois Ele não desprezou, não desdenhou a pobreza do pobre, nem lhe ocultou sua face, mas ouviu-o, quando a ele gritou” (Sl 21,25). Assim como ao entrar em Jerusalém toda a cidade ficou agitada, agora toda a terra se abalou por ocasião de sua morte, por isso, o centurião proclamará: “Ele era mesmo o Filho de Deus”.  

Reviver os passos da paixão, morte e ressurreição de Jesus neste tempo solene é mergulhar no seu mistério, a fim de responder à pergunta fundamental: “Quem é esse homem?”. Caso contrário, não acreditaremos que ele é verdadeiramente o Filho de Deus; sem assumir a sua cruz, não participaremos de sua ressurreição.

Fonte: https://www.dehonianosbre.org.br/homilias/domingo-de-ramos-e-da-paixao-do-senhor–mt-21-1-11-e-27-11-54–quem-e-este-rei-desarmado-que-abala-a-terra-

QUINTO DOMINGO DA QUARESMA (Ano A) – P. Lucas, scj

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Caros irmãos, a liturgia deste quinto domingo da Quaresma, Ano A, conclui a catequese sobre o Batismo apresentando Jesus como a ressurreição e a vida através do relato da ressurreição de Lázaro (cf. Jo 11,1-45). Abramos nosso coração ao Senhor pedindo que, pelo poder do Espírito Santo, aumente e fortaleza sempre mais a nossa fé em Seu poder e Sua misericórdia.

Ao anseio que todos trazemos em nosso coração de viver plenamente, o Senhor Jesus Cristo é a única resposta possível, porquanto Ele diz: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, mesmo que morra, viverá. E todo aquele que vive e crê em mim, não morrerá jamais” (Jo 11,25-26). Trata-se, por certo, de uma vida que está além da mera vida biológica pois, ainda que fosse possível estendê-la indefinidamente, ela, por isso, não se tornaria plena e capaz de satisfazer-nos: precisamos de mais, precisamos tornar-nos divinos, ou seja, precisamos viver na vida divina, precisamos viver em Cristo (cf. Gl 2,19-20).

Ora, pelo Batismo, recebemos o Espírito Santo e fomos enxertados em Cristo. Dessa forma, cumpriu-se a profecia de Ezequiel, “porei em vós o meu espírito, para que vivais” (Ez 37,14 – primeira leitura), e a palavra de Paulo aos romanos, “se, porém, Cristo está em vós, embora vosso corpo esteja ferido de morte por causa do pecado, vosso espírito está cheio de vida, graças à justiça” (Rm 8,10 – segunda leitura). Permanece, contudo, a pergunta de Jesus: “Crês isto?” (Jo 11,26). Deixemo-nos, portanto, tocar pelo Espírito e abramos nossos corações às Suas inspirações para que, vencendo o pecado, possamos viver desde já na vida que, de fato, merece o nome de Vida.

Ó Pai, dá-nos o Espírito Santo para que seja sempre mais plena a nossa comunhão com Teu Filho Jesus Cristo. Maria santíssima, Refúgio dos pecadores, ensina-nos a corresponder ao Amor de Deus. S. José, nosso protetor, leva-nos à intimidade com Jesus.

Sub tuum præsidium confugimus.
sancta Dei Genitrix:
nostras deprecationes
ne despicias in necessitatibus:
sed a periculis cunctis libera nos semper,
Virgo gloriosa et benedicta.

V Domingo da Quaresma: Jo 11,1-45 – Incredulidade: a doença mortal

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Por Dom André Vital Félix da Silva, SCJ.

A liturgia desse V Domingo nos apresenta a última catequese sobre o batismo: a ressurreição de Lázaro; no mistério da morte daquele que crê, o anúncio da vitória da vida que não morre. Assim como na cura do cego de nascença (IV Domingo) apareceram os verdadeiros cegos, aqui se revelam quem são os verdadeiros doentes e que arriscam morrer verdadeiramente. A doença de Lázaro serve para: “A glória de Deus, para que o Filho de Deus seja glorificado por ela”, porque é ocasião para Jesus revelar que há uma doença mais grave na vida do ser humano do que os males físicos: a incredulidade, pois esta sim pode levar à morte eterna, e só crendo Nele, o ser humano poderá ser curado dessa enfermidade letal. A incredulidade não é apenas a não crença numa divindade ou a não aceitação de um credo religioso, mas representa algo mais mortal para o ser humano, é a recusa do amor de Deus, “que tanto amou o mundo que entregou o seu Filho único, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16). A rejeição ao amor de Deus é uma das marcas do nosso tempo. Na base de todo desamor (ódio, violência, injustiças etc.) está a ausência da experiência de ser amado. Lázaro é o símbolo do homem que, apesar de sua doença, é amado por Deus. Quando as irmãs mandam dizer a Jesus que ele estava doente não o identificam com o seu nome (Lázaro), mas com uma expressão que indica a condição de todo ser humano: “Aquele que amas está doente”.

Como é difícil para o mundo de hoje reconhecer essas duas grandes verdades: por um lado, a doença da incredulidade, por outro, o amor de Deus que é capaz de curá-la desse mal, e garantir não apenas a saúde do corpo para alguns anos aqui na terra, mas a vida que não morre, cujo ápice é a ressurreição, a plenitude da vida. Da parte do ser humano basta crer nesse amor, o mais Deus já fez: “Não há maior prova de amor do que dar a vida” (Jo 15,13). A necessidade urgente de contemplar o crucificado não é impulso masoquista de uma religião alienante, mas a condição imprescindível para fazer a experiência de um amor, que não se acovarda para provar que é verdadeiro.  

Até chegar ao túmulo de Lázaro, o morto que não morreu, Jesus vai encontrando muitos outros doentes (incrédulos) que estão morrendo, cujos sintomas vão se evidenciando nos vários personagens da narração. O primeiro sintoma manifesta-se nos discípulos: “Mestre, ainda há pouco os judeus queriam apedrejar-te, e agora vais outra vez para lá?”, é o medo-covarde que toma o coração dos discípulos. Choca reconhecer que os primeiros da lista dos doentes são os próprios discípulos. O medo da morte para quem não tem fé já é a morte antecipada. Infelizmente hoje, também, há muitos que se dizem cristãos, mas na hora de seguir os passos do Mestre, rejeitado e condenado à morte por causa de sua fidelidade à verdade, acovardam-se e decidem por outra estrada. Se a morte nos lança uma penumbra de incertezas, a luz de Cristo rompe a escuridão e nos garante que a morte física é apenas uma passagem como a noite é vencida pela luz do amanhecer: “Se alguém caminha de dia, não tropeça, porque vê a luz deste mundo”. 

A palavra de Jesus inicia, nos discípulos acovardados e medrosos, o processo de cura; não é por acaso que aquele, cuja incredulidade foi definitivamente sanada após o encontro com o Senhor ressuscitado, tome a palavra e dê o primeiro passo da fé: “Tomé disse então aos outros discípulos: ‘Vamos também nós para morrermos com ele!’”.

Marta e Maria, mesmo demonstrando certa fé em Jesus, passam pelo momento da dúvida: “Se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido”. A fé questiona, mas não deixa dúvidas, pois indica o caminho. A dúvida (do latim: dubitare, oscilar entre duas partes; grego: distadzo, ficar em dois caminhos) paralisa, por isso Maria está prostrada (“ficou sentada em casa”), não consegue caminhar até Jesus porque tem dúvidas. Contudo, a sua irmã Marta, tendo sido desafiada por Jesus a vencer a dúvida pela fé: “Crês isto? Sim, Senhor, eu creio”, vai chamá-la a fim de que se levante (grego egeiro: levantar, mesmo verbo para ressuscitar) e tome a estrada em direção ao Mestre, abandone o seu sepulcro e tenha vida. 

Outro sintoma da incredulidade é a falta de esperança: os judeus, apesar de terem ido à casa de Marta e Maria para consolá-las, não foram capazes de infundir-lhes esperança, não conseguiram enxugar as lágrimas das enlutadas, mas pelo contrário choravam com elas aumentando o clima de desespero. Diante de tantos sinais de incredulidade, a reação de Jesus: “Estremeceu interiormente… E Jesus chorou”. Não é coerente pensar que o choro de Jesus se deu pelo fato de estar inerte diante do túmulo de um amigo amado agora defunto, pois ele sabia que iria ressuscitá-lo; a certeza da ressurreição já era suficiente para vencer a tristeza da morte, por isso Jesus não precisava chorar. Portanto, a indignação de Jesus (comoveu-se interiormente, grego: enebprimésato en pneumati, encolerizar-se em espírito) é mais do que uma tristeza emocional, mas um repúdio diante da incredulidade assim como Jesus chorou ao ver Jerusalém, que não reconheceu o dia da sua visita (Lc 19,41s). Portanto, é a incredulidade, a recusa de Deus e do seu amor que provoca o choro de Jesus.

Contudo, para esta doença há esperança de cura, pois o Pai ouve sempre o Filho, e este é o desejo do Filho: “que todos tenham vida e vida em abundância” (Jo 10,10). Na oração de Jesus à porta do sepulcro se consolida toda a nossa esperança de cura: “Pai, dou-te graças”. Jesus não pede para que algo aconteça, abrindo espaço para dúvidas, mas agradece por aquilo que vai acontecer, por isso utiliza o verbo eucharisto (daí Eucaristia: memorial da paixão, morte e ressurreição do Senhor). Assim chegamos ao ponto mais alto de nossa preparação quaresmal: o anúncio da morte e ressurreição de Cristo, o grande sinal dado por Deus de que nos ama, a grande ajuda (Lázaro significa “Deus ajuda”) para vencermos a incredulidade e termos vida plena. Todo batizado foi curado da doença da incredulidade, mas para que não adoeça precisa vencer a tentação da incredulidade. Celebrar a Eucaristia, alimento dos batizados, é dar a resposta: “Sim, eu creio que tu és o Cristo, o Filho de Deus que devia vir ao mundo”, cuja missão é testemunhar que Deus nos ama. E, por isso, a permanente pergunta do Senhor a nós: “Crês isso!”.

Fonte: https://www.dehonianosbre.org.br/homilias/v-domingo-da-quaresma–jo-11-1-45–incredulidade–a-doenca-mortal

QUARTO DOMINGO DA QUARESMA (Ano A) – P. Lucas, scj

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Caros irmãos, neste quarto domingo da Quaresma, Ano A, a liturgia continua a catequese sobre o Batismo e, enquanto nos apresenta o símbolo da luz no relato da cura do cego de nascença (cf. Jo 9,1-41), nos conduz pelo caminho que culminará na renovação do nosso. Rezemos a nosso Senhor pedindo que, pelo poder do Espírito Santo, faça brilhar sempre mais em nossos corações a luz da fé.

Mais uma vez, contemplamos a grande bondade e misericórdia de nosso Senhor que toma a iniciativa, se aproxima e, com lama, cura o homem que nascera cego (cf. Jo 9,1-7). É sempre consolador lembrarmo-nos que Jesus Cristo é alguém que está próximo, atento às nossas necessidades e pode recriar-nos, elevando-nos à vida divina – à santidade: assim, as obras de Deus se manifestam também na nossa miséria. Nós, de fato, precisamos que Ele nos socorra com a Sua luz, ou seja, a fé, para enxergar bem, pois frequentemente vemos apenas as aparências, temos uma visão superficial da realidade, enquanto “o Senhor olha o coração” (1Sm 16,7).

E, como aconteceu ao homem curado da cegueira, a fé, que é dom de Deus, faz-nos reconhecer, pouco a pouco, quem é o Cristo: de um homem chamado Jesus (cf. Jo 9,11), o que foi cego passa a proclamá-lo como profeta (cf. Jo 9,17) e, por fim, aceita-o como o Filho do Homem (cf. Jo 9,38). Precisamos, portanto, estar dispostos a progredir na fé, porque a obra de Deus em nós, na maioria das vezes, não acontece de modo repentino e extraordinário, mas como um longo caminho feito de inúmeros, pequenos e insistentes passos. Abramo-nos Àquele que nos quer dar um olhar mais profundo sobre a realidade e deixemos que Ele nos conduza até a vida plena.

Ó Pai, dá-nos o Espírito Santo para que nossa fé em Teu Filho Jesus Cristo seja revigorada. Maria santíssima, Mãe das Dores, ensina-nos a perseverança. S. José, nosso protetor, dá-nos olhos fixos em Jesus.

Sub tuum præsidium confugimus.
sancta Dei Genitrix:
nostras deprecationes
ne despicias in necessitatibus:
sed a periculis cunctis libera nos semper,
Virgo gloriosa et benedicta.

IV Domingo da Quaresma: Jo 9,1-41 – Batismo: unge e lava os olhos para ver a verdade

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Por Dom André Vital Félix da Silva, SCJ.

Neste tempo especial de preparação dos catecúmenos para o Batismo e da renovação das promessas dos já batizados, a liturgia deste Domingo nos apresenta, no encontro de Jesus com o cego de nascença, mais uma catequese batismal. A narração da cura do cego de nascença, com o simbolismo próprio do IV evangelho, tem como objetivo a revelação da pessoa de Jesus no seu mistério de Deus encarnado, luz que ilumina todo homem vindo ao mundo (Jo 1,9), mas ao mesmo tempo mostra que todo aquele que é iluminado por Ele torna-se testemunha da luz verdadeira. No cego de nascença curado temos uma prefiguração de todo batizado; no Cristianismo primitivo tanto o batismo quanto a vida cristã eram chamados de iluminação: “Lembrai-vos, contudo, dos vossos primórdios: apenas havíeis sido iluminados, suportastes um combate doloroso” (Hb 10,32, do grego photismós: iluminação). São Paulo define os batizados como “filhos da luz”, Ef 5,7 (grego: tekna photos).

A luz é símbolo da verdade, a única capaz de garantir a vida, pois liberta o ser humano de toda escravidão (Jo 8,32). Contudo, para o cristão, a verdade não se esgota numa simples correspondência entre uma ideia representada na mente e algo externo perceptível na realidade. A verdade para o batizado é uma pessoa: Jesus, “o Verbo de Deus que se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14). É nele que o ser humano descobre quem é (GS 22); o encontro com o Senhor inunda de luz a sua vida para que conheça a verdade sobre si, sobre o mundo, sobre Deus. Porém, este caminho não se faz por pura iniciativa humana, mas na base de tudo está a graça de Deus que, apesar do nosso pecado, se manifesta. O batismo é justamente a porta de entrada que nos leva ao conhecimento da verdade. Encontrando-se com a verdade, o batizado é desafiado a reconhecer e discernir o que é verdadeiro do que é mentiroso.

Numa sociedade que jaz sob a ditadura do relativismo, como denunciou Bento XVI, a única verdade permitida é que a verdade não existe, ou no máximo depende do subjetivismo de cada um. Os próprios defensores dessa mentira se contradizem crendo que essa sua mentira é a verdade absoluta, e não escapam da necessidade de uma verdade, ainda que esta seja mentira. 

O cego que começa a enxergar representa o ser humano que reconhece a verdade e, portanto, não se deixa aprisionar pela mentira usurpadora. O evangelho nos apresenta, de forma didática, este caminho rumo à verdade, através de dois gestos simbólicos: ungir e lavar os olhos.

 “Jesus cuspiu no chão, fez lama com a saliva e colocou-a sobre os olhos do cego”. A expressão grega traduzida por “colocar sobre” (os olhos) no grego é uma palavra só (epechrisenepi, sobre; e o verbo chrio, de onde vem Cristo, ungido, crisma, unção). No Antigo Testamento é um verbo usado para a unção de reis (1Sm 10,1), sacerdotes (Ex 28,4), profetas (1Rs 19,16) e pode ser muito bem compreendida como “ungir”. Portanto, o gesto de Jesus adquire um sentido mais profundo: ungindo o cego com a argila da terra e a sua saliva recorda o ato primordial de Deus ao criar o ser humano (Gn 2,7). Esta é a primeira experiência de encontro com a verdade: o homem que toma consciência do que ele é, isto é, uma criatura de Deus, intimamente ligado à terra, mas que recebeu um sopro divino e, por isso, não pode negar a sua natureza transcendente. Reduzir o homem a um animal terráqueo é torná-lo cego. Sem dúvida, esta é uma das verdades mais contestadas por ideologias materialistas, que aprisionam o homem ao mundo das satisfações materiais, impedindo-lhe de conhecer a verdade de que ele é mais do que o seu corpo e suas necessidades.

Vai lavar-te na piscina de Siloé”: recuperando a verdade fundamental da sua existência, o cego precisa dar um outro passo: obedecer à Palavra de Jesus que o envia à piscina. Lavar-se significa mergulhar em Siloé (hebraico: Shiloah, enviado). O próprio Jesus, um pouco antes, afirmara ser ele o enviado do Pai: “É necessário realizar as obras daquele que me enviou”. Simbolicamente o homem que foi ungido, que recebeu gratuitamente o dom de Deus, agora precisa mergulhar em Cristo, tornar-se um discípulo dele para continuar a conhecer a verdade que liberta. Paralelamente, todas as outras pessoas se opõem à verdade incontestável da cura do que fora cego. Mesmo enxergando a verdade, não querem reconhecê-la (vizinhos, pais, fariseus). Pois acolher a verdade exige ter os olhos ungidos e lavados pelo Cristo. Preferem fechar os olhos para não se comprometer com a verdade, pois essa tem um preço, que se paga inclusive com a vida. Só quem faz a experiência de ser libertado por ela é capaz de dar a vida por ela, pois sabe que não a perderá para sempre. 

Os vizinhos, os pais e os fariseus negaram a verdade porque caíram na tentação de separar a verdade da cura com a verdade de quem a realizou. 

Quando o ser humano provoca um divórcio entre a verdade e a realidade, ele cria a sua própria verdade e, consequentemente, aprisiona-se às suas mentiras. As grandes mentiras proclamadas verdades no nosso mundo hoje são fruto do divórcio entre cultura e natureza, pois não se pode crer que uma cultura é verdadeira se esta destrói a natureza; no âmbito da religião quando se divorcia a ação pastoral do depósito da fé, a religião deixa de ser profética e vira uma ONG ou mesmo um clube de amigos. Separando o amor da abnegação, tudo vira sentimentalismo escravizador. Uma autoridade que não é serviço depõe contra a vida, e a faz refém de privilégios mesquinhos. Quando se estabelece um hiato entre fé e razão, as duas asas de elevação do espírito humano rumo à verdade, entre espiritualidade e consciência moral, forja-se uma ciência servidora de interesses egoístas e mercadológicos e uma religião que não passa de sedativo de angústias, sem produzir atitudes coerentes e verdadeiras transformações.

Se o batismo nos faz mergulhar no mistério de Cristo, morto e ressuscitado, ser batizado é ser iluminado por Ele, a luz da verdade, e tornar-se sua testemunha no mundo que tem medo da verdade, mas que necessita urgentemente dela, caso contrário não encontrará a liberdade verdadeira nem vida em plenitude.

Fonte: https://www.dehonianosbre.org.br/homilias/iv-domingo-da-quaresma–jo-9-1-41–batismo–unge-e-lava-os-olhos-para-ver-a-verdade

O que a oração pede, o jejum o alcança e a misericórdia o recebe

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Dos Sermões de São Pedro Crisólogo, bispo.

Há três coisas, meus irmãos, três coisas que mantêm a fé, dão firmeza à devoção e perseverança à virtude. São elas a oração, o jejum e a misericórdia. O que a oração pede, o jejum alcança e a misericórdia recebe. Oração, misericórdia, jejum: três coisas que são uma só e se vivificam reciprocamente.

O jejum é a alma da oração e a misericórdia dá vida ao jejum. Ninguém queira separar estas três coisas, pois são inseparáveis. Quem pratica somente uma delas ou não pratica todas simultaneamente, é como se nada fizesse. Por conseguinte, quem ora também jejue; e quem jejua, pratique a misericórdia. Quem deseja ser atendido nas suas orações, atenda as súplicas de quem lhe pede; pois aquele que não fecha seus ouvidos às súplicas alheias, abre os ouvidos de Deus às suas próprias súplicas.

Quem jejua, pense no sentido do jejum; seja sensível à fome dos outros quem deseja que Deus seja sensível à sua; seja misericordioso quem espera alcançar misericórdia; quem pede compaixão, também se compadeça; quem quer ser ajudado, ajude os outros. Muito mal suplica quem nega aos outros aquilo que pede para si.

Homem, sê para ti mesmo a medida da misericórdia;deste modo alcançarás misericórdia como quiseres, quanto quiseres e com a rapidez que quiseres; basta que te compadeças dos outros com generosidade e presteza.

Peçamos, portanto, destas três virtudes – oração,jejum, misericórdia – uma única força mediadora junto de Deus em nosso favor; sejam para nós uma única defesa, uma única oração sob três formas distintas.

Reconquistemos pelo jejum o que perdemos por não saber apreciá-lo; imolemos nossas almas pelo jejum, pois nada melhor podemos oferecer a Deus como ensina o Profeta: Sacrifício agradável a Deus é um espírito penitente; Deus não despreza um coração arrependido e humilhado (cf. Sl 50,19).

Homem, oferece a Deus a tua alma, oferece a oblação do jejum, para que seja uma oferenda pura, um sacrifício santo, uma vítima viva que ao mesmo tempo permanece em ti e é oferecida a Deus. Quem não dá isto a Deus não tem desculpa, porque todos podem se oferecer a si mesmos.

Mas, para que esta oferta seja aceita por Deus, a misericórdia deve acompanhá-la; o jejum só dá frutos se for regado pela misericórdia, pois a aridez da misericórdia faz secar o jejum. O que a chuva é para a terra, é a misericórdia para o jejum. Por mais que cultive o coração, purifique o corpo, extirpe os maus costumes e semeie as virtudes, o que jejua não colherá frutos se não abrir as torrentes da misericórdia.

Tu que jejuas, não esqueças que fica em jejum o teu campo se jejua a tua misericórdia; pelo contrário, a liberalidade da tua misericórdia encherá de bens os teus celeiros. Portanto, ó homem, para que não venhas a perder por ter guardado para ti, distribui aos outros para que venhas a recolher; dá a ti mesmo, dando aos pobres, porque o que deixares de dar aos outros, também tu não o possuirás.

TERCEIRO DOMINGO DA QUARESMA (Ano A) – P. Lucas, scj

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Caros irmãos, durante o Ano A, a liturgia quaresmal nos conduz por um caminho batismal: enquanto os catecúmenos se preparam para as fontes da vida nova, nós somos levados a renovar o nosso Batismo. Desse modo, o terceiro domingo da Quaresma apresenta-nos o símbolo da água através do encontro de Jesus com a Samaritana no Poço de Jacó (cf. Jo 4,5-42). Rezemos pedindo a nosso Senhor que derrame em nós o Espírito Santo e, assim, nos faça renascer para a vida plena.

Contemplemos, antes de mais, a humildade do Senhor Jesus Cristo: Ele sai da sua terra, vai para o lugar de um povo inimigo e, sedento e fatigado, coloca-se à beira do poço e pede de beber à samaritana que vinha tirar água (cf. Jo 4,6-7). De fato, superando o abismo da inimizade criado pelo pecado, o Senhor desceu dos céus, não só para se fazer disponível a nós, mas também para experimentar nossa sede e nosso cansaço. Além disso, é Ele quem toma iniciativa e nos dirige uma palavra como um mendigo: “dá-me de beber” (Jo 4,7). Porque nos ama, pede-nos o que só nós lhe podemos dar: nossa fé, nosso coração.

Se respondemos com a fé Àquele que nos dirige a Palavra, veremos que, na verdade, Ele mesmo quer saciar-nos com a Água que só Ele pode dar: o Espírito Santo (cf. Jo 4,14). Conhecendo-nos profundamente (cf. Jo 4,16-18), o Senhor sabe que precisamos de muito mais que água para saciar o nosso coração. Por isso, Ele mesmo Se nos dará a conhecer e, dessa forma, nos saciará com a Sua presença, de modo que possamos oferecer-nos a Deus e permanecermos em Sua presença (cf. Jo 4,19-26). Abramos, portanto, o nosso coração à presença do Senhor Jesus Cristo no nosso cotidiano e deixemo-nos inundar pela torrente de Graça que brota do Seu sacratíssimo Coração.

Ó Pai, dá-nos o Espírito Santo para que reconheçamos Teu Filho Jesus Cristo e o acolhamos em nosso cotidiano. Maria santíssima, Mãe de Misericórdia, ajuda-nos a viver nosso Batismo. S. José, nosso protetor, dá-nos a intimidade com Jesus.

Sub tuum præsidium confugimus.
sancta Dei Genitrix:
nostras deprecationes
ne despicias in necessitatibus:
sed a periculis cunctis libera nos semper,
Virgo gloriosa et benedicta.

III Domingo da Quaresma: Jo 4,5-42 – Do poço à fonte batismal

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Por Dom André Vital Félix da Silva, SCJ.

Os evangelhos dos dois primeiros domingos da Quaresma, nos três anos, estão sempre centrados em Cristo tentado e transfigurado; os outros três domingos preparam mais diretamente para o batismo ou à renovação das promessas na noite da Páscoa” (Cristo, festa da Igreja, pág. 268). Como estamos no ano A, cujo itinerário quaresmal sublinha mais o aspecto batismal, a começar deste III Domingo as perícopes evangélicas são eminentemente catequeses batismais (Samaritana, Cego de nascença, Ressurreição de Lázaro). É uma verdadeira síntese do significado do batismo como vida nova que brota do mergulho na morte e ressurreição de Cristo, que é a água viva, a luz do mundo, e a ressurreição e a vida.

Apesar de a liturgia deste Domingo destacar especificamente o encontro-diálogo de Jesus com a Samaritana, não podemos esquecer que na introdução do capítulo (4,1-2) aparece claramente o tema do batismo. Diante da riqueza inesgotável do texto, destacaremos apenas alguns dos seus elementos considerando a sua perspectiva de catequese batismal:

1. Batismo é dom gratuito: Jesus, chegando primeiro ao poço de Jacó, aguarda a mulher que vem pegar água; ele toma a iniciativa de lhe oferecer uma água superior àquela que ela pretende tirar. Apesar de ser a fonte de água viva, Jesus se coloca diante da Samaritana como um sedento: “Dá-me de beber”. Apresentar-se diante do outro, sobretudo quando há inimizade, na cultura do Antigo Oriente, era manifestar o seu desejo de reatar as relações, estabelecer a paz. Ademais, a sede de Jesus se revelará como desejo ardente de saciar a sede da mulher, de dar-lhe vida plena, que começa com a iluminação da sua história nem sempre exemplar, mas que será necessário reconhecer e assumir a fim de curar as feridas do seu coração preconceituoso e seus sentimentos de inferioridade: “Como tu judeu, pedes de beber a mim, que sou uma mulher Samaritana?” Pregado na cruz, Jesus mais uma vez confirma qual é, de fato, a sua sede (Jo 19,28). À Samaritana Ele promete a água viva. Na cruz Ele realiza essa promessa entregando o seu Espírito e, do seu coração traspassado, fazendo brotar água e sangue, símbolos do Batismo e da Eucaristia, os sacramentos que consolidam a missão e a identidade da Igreja, a sua esposa, a nova Eva, tirada do seu lado aberto, anunciada simbolicamente no encontro com a mulher Samaritana, chamada à fidelidade da Nova Aliança, firmada em espírito e em verdade.

2. Batismo é vida nova: ao prometer a água viva, Jesus desafia a Samaritana a ter uma vida nova. E, portanto, não haverá mais necessidade de voltar ao poço, não viverá mais como uma infiel, pois teve cinco maridos e o atual não era dela, não precisará mais de um cântaro para transportar água, pois nela se fará uma fonte de água jorrando para a vida eterna. Todo ser humano sedento de plenitude de vida, ao receber o dom do batismo, inicia um caminho conduzido pela palavra de Jesus e pela graça do Espírito Santo, a fim de que a vida nova recebida como dom não pereça. Contudo, deve abandonar os ídolos (maridos) para realizar os esponsais com o único Senhor, aquele que é o Senhor da vida. A vida nova recebida no batismo progride à medida que se cresce no conhecimento da pessoa de Jesus, pois essa vida nova significa configurar-se a Ele. Assim como a Samaritana foi amadurecendo na fé, partindo do reconhecimento preconceituoso de Jesus (tu, Judeu), passando por um processo de conversão, isto é, abertura de coração e mudança de atitudes, deixando-se orientar e corrigir (profeta) até a profissão de fé mais perfeita (Cristo), todo batizado, e não apenas os catecúmenos, precisa assumir na sua vida um permanente aprofundamento da pessoa de Jesus, crescendo nas convicções de segui-lo e de testemunhar a sua fé nele. Por isso rezamos no primeiro Domingo da Quaresma: “Concedei-nos, ó Deus onipotente, que, ao longo desta Quaresma, possamos progredir no conhecimento de Jesus Cristo e corresponder a seu amor por uma vida santa”.   

3. Batismo é fundamento da missão: na sua exortação apostólica Evangelii Gaudium n. 9, o Papa Francisco nos recorda: “O bem tende sempre a comunicar-se. Toda a experiência autêntica de verdade e de beleza procura, por si mesma, a sua expansão; e qualquer pessoa que viva uma libertação profunda adquire maior sensibilidade face às necessidades dos outros. E, uma vez comunicado, o bem radica-se e desenvolve-se. Por isso, quem deseja viver com dignidade e em plenitude, não tem outro caminho senão reconhecer o outro e buscar o seu bem. Assim, não nos deveriam surpreender frases de São Paulo como estas: ‘O amor de Cristo nos absorve completamente’ (2Cor 5,14); ‘ai de mim, se eu não evangelizar!’ (1Cor 9,16)”. Sem dúvida, esta foi a experiência da Samaritana e, portanto, deve ser a de todo batizado. A missão não é algo artificial que procura estratégias para impor aos outros ideias ou pensamentos pessoais ou de um grupo, mas é, antes de tudo, testemunho convicto: “Muitos samaritanos daquela cidade abraçaram a fé em Jesus por causa da palavra da mulher que testemunhava: ‘Ele me disse tudo o que eu fiz’”.

O percurso quaresmal reaviva em nós esta dinâmica própria do batismo, graça que nos é oferecida gratuitamente no sacramento e que compartilhamos gratuitamente na missão.

Fonte: https://www.dehonianosbre.org.br/homilias/iii-domingo-da-quaresma–jo-4-5-42–do-poco-a-fonte-batismal

CHAMADOS À SANTIDADE (3): Santidade e apostolado no meio do mundo. Exemplo dos primeiros cristãos.

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Por Francisco Fernández-Carvajal.

Os primeiros cristãos superaram muitos obstáculos através do seu esforço e do seu amor por Cristo, e mostraram-nos o caminho: a firmeza com que perseveraram na doutrina do Senhor levou de vencida a atmosfera materialista e freqüentemente hostil que os rodeava. Inseridos no seio de uma sociedade pagã, não procuraram no isolamento o remédio contra um possível contágio e a sua própria sobrevivência. Estavam plenamente convencidos de serem fermento de Deus, e a sua ação silenciosa mas eficaz acabou por transformar aquela massa informe. “Souberam sobretudo estar serenamente presentes no mundo, sem desprezar os seus valores nem as realidades terrenas. E esta presença – “já ocupamos o mundo e todas as vossas coisas”, proclamava Tertuliano –, uma presença que se estendia a todos os ambientes, que se interessava por todas as realidades honestas e valiosas, impregnou-as de um espírito novo” [1]. 

O cristão, com a ajuda de Deus, procurará tornar nobre e valioso o que é vulgar e corrente, esforçar-se-á por converter tudo o que toca não tanto em ouro, como na lenda do rei Midas, mas em graça e glória. A Igreja recorda-nos a necessidade urgente de estarmos presentes no meio do mundo, para reconduzir a Deus todas as realidades terrenas. Isto só será possível se nos mantivermos unidos a Deus mediante a oração e os sacramentos. Como os ramos estão unidos à videira [2], assim devemos nós estar unidos ao Senhor em todos os instantes. 

“São necessários arautos do Evangelho, peritos em humanidade, que conheçam a fundo o coração do homem de hoje, participem das suas alegrias e esperanças, das suas angústias e tristezas, e ao mesmo tempo sejam contemplativos, enamorados de Deus. Para isso são precisos novos santos. Devemos suplicar ao Senhor que aumente o espírito de santidade na Igreja e nos envie santos para evangelizar o mundo de hoje” [3]. Destas palavras do Papa fazia-se eco o Sínodo Extraordinário dos Bispos, no seu balanço global sobre a situação da Igreja: “Hoje em dia, precisamos de pedir a Deus – com força, com assiduidade – santos” [4]. 

O cristão deve ser “outro Cristo”. Esta é a grande força do testemunho cristão. De Jesus se dizia, como resumo da sua vida, que passou pela terra fazendo o bem [5], e isso deveria dizer-se de cada um de nós, se de verdade queremos imitá-lo. “O Senhor Jesus, Mestre e Modelo divino de toda a perfeição, pregou a todos e cada um dos discípulos, de qualquer condição, a santidade de vida da qual Ele mesmo é o autor e o consumador: Sede, pois, perfeitos […]. É assim evidente que todos os fiéis cristãos de qualquer estado ou condição de vida são chamados à plenitude da vida cristã e à perfeição da caridade. Por esta santidade, promove-se também na sociedade terrestre um modo mais humano de viver” [6]. 

[1] J. Orlandis, La vocación cristiana del hombre de hoy, 3ª ed., Rialp, Madrid, 1973, pág. 48.

[2] Cf. Jo 15, 1-7.

[3] João Paulo II, Discurso, 11-X-1985.

[4] Sínodo extraordinário dos Bispos, 1985, Relação final, II, A, n. 4.

[5] At 10, 38.

[6] Conc. Vat. II, Const. Lumen gentium, 40.

CHAMADOS À SANTIDADE (2): “Santificar o trabalho”, “santificar-se no trabalho”, “santificar os outros com o trabalho”. Necessidade de pessoas santas para transformar a sociedade.

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Por Francisco Fernández-Carvajal.

Sede, pois, perfeitos como vosso Pai celestial é perfeito. A santidade – amor crescente por Deus e pelos outros por Deus – pode e deve ser adquirida através das coisas de todos os dias, que se repetem muitas vezes numa aparente monotonia. “Para amar a Deus e servi-lo, não é necessário fazer coisas estranhas. Cristo pede a todos os homens sem exceção que sejam perfeitos como seu Pai celestial é perfeito (Mt V, 48). Para a grande maioria dos homens, ser santo significa santificar o seu próprio trabalho, santificar-se no trabalho e santificar os outros com o trabalho, e assim encontrar a Deus no caminho da vida” [1]. 

Para que o trabalho possa converter-se em meio de santidade, é necessário que seja humanamente bem feito, pois não podemos oferecer a Deus nada de defeituoso, porque não seria aceito [2]. Um trabalho bem realizado exige não só que cuidemos dos pequenos deveres próprios de qualquer profissão, mas ainda que pratiquemos fidelissimamente a virtude da justiça para com as outras pessoas e para com a sociedade: que retifiquemos prontamente os erros que tenhamos cometido em relação às pessoas com quem ou para quem trabalhamos; que nos esforcemos constantemente por melhorar a nossa competência profissional. São aspectos que devem ter muito presentes tanto o empresário como o operário ou o estudante, o médico ou a mãe de família que se dedica ao cuidado da casa. 

Santificar-se no trabalho significa convertê-lo em ocasião e lugar de trato com Deus. Para isso, podemos oferecer ao Senhor as nossas tarefas antes de começá-las, e depois renovar esse oferecimento com freqüência, aproveitando uma ou outra circunstância. Ao longo das nossas horas de trabalho, sempre se apresentarão ocasiões de procurar ou aceitar pequenos sacrifícios que enriquecem a vida interior e a própria tarefa que nos ocupa; como também surgirão inúmeras ocasiões de praticar as virtudes humanas (a laboriosidade, a tenacidade, a alegria…), bem como as sobrenaturais (a fé, a esperança, a caridade, a prudência…). 

Por último, o trabalho pode e deve ser meio de dar a conhecer a figura e a doutrina de Cristo a muitas pessoas. Há profissões que têm uma repercussão imediata na vida social: as tarefas de docência, as que se relacionam com os meios de informação, os cargos públicos… Mas não existem tarefas que não tenham nada a ver com a doutrina de Jesus Cristo. Mesmo os problemas especificamente técnicos de uma empresa ou as ocupações de uma mãe de família no seu lar podem ter soluções diversas, por vezes radicalmente diversas, conforme se tenha uma visão pagã ou cristã da vida. Um homem sem fé terá sempre uma visão incompleta do mundo, e o estilo cristão de comportar-se, se por vezes pode chocar com as modas do momento, com as práticas correntes entre colegas de uma mesma profissão, pode oferecer-nos, precisamente por isso, ocasiões especialmente propícias para darmos a conhecer a figura de Cristo, sendo exemplares na maneira cristã de atuar e conduzindo-nos com naturalidade e firmeza. 

O mundo necessita de Deus, tanto mais quanto mais afirma que não necessita dEle. Nós, cristãos, esforçando-nos por seguir a Cristo seriamente, temos por missão dá-lo a conhecer. “Um segredo. – Um segredo em voz alta: estas crises mundiais são crises de santos. – Deus quer um punhado de homens «seus» em cada atividade humana. – Depois… «pax Christi in regno Christi» – a paz de Cristo no reino de Cristo” [3]. 

Santificar o trabalho. Santificar-se no trabalho. Santificar os outros com o trabalho. 

[1] Josemaría Escrivá, Questões atuais do cristianismo, 3ª ed., Quadrante, São Paulo, 1986, n. 55.

[2] Cf. Lev 22, 20.

[3] Josemaría Escrivá, Caminho, n. 301.

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